Mais uma reflexão sobre o SUS.
Trechos editados a partir de conteúdo do portal DeBrasília.com
Um dia, alguns anos atrás, entrei no serviço de ortopedia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, lotado de pacientes e médicos. Ao me ver, o especialista Luiz Roberto Marczyk me conduziu até um dos boxes para consultas. Paramos diante de uma senhora, magra, bem velhinha. Marczyk pediu então que ela deixasse a cadeira e caminhasse até onde estávamos, o que ela fez com um largo e satisfeito sorriso. Em seguida, perguntou àquela senhora, na minha frente, o que aqueles passos significavam - e a paciente revelou, com alívio e quase gritando de alegria, que o hospital - que é praticamente exclusivo do SUS - tinha devolvido a ela o prazer de caminhar.
Lembrei desta história, que me comoveu na época, ao ouvir os depoimentos do médico Ricardo Kroef em um dos programas Polêmica da semana. Kroef é chefe do serviço de cirurgia de cabeça e pescoço do Hospital Santa Rita, no complexo da Santa Casa. Em meio aos debates sobre o sistema de saúde, ele terminou uma de suas respostas com uma frase curta, objetiva e cheia de significados:
- Sou fã do SUS.
Se eu estivesse por perto e tivesse chance de ser ouvido, diria ao especialista de um dos grandes hospitais públicos brasileiros:
- Eu também.
E não apenas por lembrar daquela senhora que teve todo seu tratamento, com alguns dos maiores ortopedistas do país, garantido pelo tão criticado e incompreendido SUS. Uma das lições que aprendi em oito anos de trabalho no Clínicas - uma das maiores experiências profissionais de meus 41 anos de jornalismo - é que o SUS costuma ser julgado por suas exceções e não pelo conjunto da obra. Para cada caso que dá errado, por falta de atendimento, de vagas ou de demora na fila de espera por consultas, há milhares que são bem-sucedidos. É um sistema (criado pela Constituinte e não por algum partido político, é bom destacar) que libera a assistência a 190 milhões de pessoas, não importa sua classe social - e pelo universo de atendidos dá para entender por que, muitas vezes, o funil não permite a passagem de todos, causando demoras e, quase sempre, as exceções de que falo. Só no Clínicas circulam por dia cerca de 4 mil pessoas, há 750 leitos permanentemente ocupados, pelo menos 20 mil exames são realizados por mês e milhares de cirurgias, como a daquela senhora, por ano. Multiplique por todas as outras instituições do país e vai dar um número astronômico.
Os procedimentos mais complexos da medicina moderna são custeados pelo SUS, inclusive para pessoas daquela parcela que mais critica o sistema, já que os planos de saúde nem sempre garantem o tratamento. Todos os transplantes do país - isso mesmo, todos - são pagos pelo SUS, incluído aí muitas vezes o transporte dos órgãos por vôos especiais. Não há nenhum sistema com este tamanho no mundo. Nos EUA, só para ficarmos no país sempre usado como referência, há mais de 50 milhões de habitantes sem qualquer assistência. Por tentar universalizar a saúde, como o Brasil, Barack Obama é chamado pelos conservadores de socialista - até porque as seguradoras de saúde não admitem ficar sem o filão. O grande embaraço, ainda não resolvido, do SUS é o funil. Há tanta demanda que o acesso a consulta s, exames e hospitalização em determinado momento fica bloqueado por absoluta falta de espaço. É onde o governo terá de atuar com mais firmeza.
Esta semana, li o depoimento chocante e emocionante de uma baiana chamada Nathalia, que mantém um blog, onde fala de sua vida. Ela teve câncer aos 12 anos. Separei um trecho para dividir com vocês:
(...) Quando eu tive câncer, eu tinha o melhor plano de saúde privado. Minha mãe pagava com muito esforço e suor desde que eu nasci. Nunca precisei, porque fui daquelas crianças que nem o dedinho do pé machucava. Quando finalmente aos 12 anos eu precisei de assistência médica pela primeira vez, o que o plano de saúde fez? Virou as costas para mim, minha mãe, meu AVC e as convulsões que eu tive na maca do Hospital Português. Minha mãe, em 2000, ficou devendo 16 mil reais ao tal hospital, porque o plano de saúde foi altamente clichê e detectou uma pré-existência. Natural, não? Eu com 0 dias de nascença já estava pré-disposta a ter um tumor maligno, um AVC e diversas convulsões. Três dias depois do AVC, fui diagnosticada com um tumor ósseo maligno em partes moles. Tava grande, causou o AVC e eu nem preciso dizer que o Plano de Saúde mais uma vez acusou pré-existência e não ofereceu nenhuma assistência ao meu tratamento.
Advinha quem forneceu 14 meses de quimioterapia, 2 meses de radioterapia, 5 cirurgias, 365 doses de uma vacina para levantar imunidade e qualquer outro remédio ou tratamento que eu precisasse durante os 14 meses que eu passei doente? É isso mesmo, coleguinha, o SUS.
Oferecia quartos com três ou cinco integrantes, acompanhante, nutricionista, terapeuta ocupacional, alimentação e o melhor time de oncologistas de Pernambuco. E caso você esteja pensando que eu tenho costas quentes, ou parentes médicos, eu não tenho. Nem eu, nem centenas de crianças que entre 2000 e 2001 se trataram comigo no Imip – Instituto Materno Infantil de Pernambuco. Recebi tratamento de primeiro mundo (...)
É um sistema perfeito?
Claro que não. Há muitas falhas ainda e o funil, como já destaquei, é estreito demais até porque a demanda é gigantesca, em um universo potencial de 190 milhões de pacientes. Chega a parecer cruel, muitas vezes, por forçar as pessoas a esperar em filas, mas também é capaz de produzir, todos os dias, depoimentos como o da jovem Nathalia. Achar que nada presta, como muitos fazem (geralmente quem não conhece o SUS ou não precisa dele), é uma injustiça com um sistema que atende - e bem - milhões de brasileiros que não teriam outro recurso para receber atendimento médico.
Kroef, o especialista citado no início do texto, revelou que pesquisas feitas nos hospitais da Santa Casa mostram índices de 95% de satisfação entre os pacientes atendidos pelo SUS. Certamente haverá o mesmo resultado se o levantamento for realizado nas outras instituições. Há gargalos ainda, que poderiam ser amenizados se o país criasse uma rede confiável de postos de saúde, capazes de filtrar os casos mais graves e reduzir a busca dos hospitais, há dramas como a da jovem mãe que viajou mais de 600 quilômetros para ter seus gêmeos, há um imenso trabalho pela frente (de sucessivos governos) até corrigir todas as distorções, mas há igualmente milhares histórias como a de Nathalia. E elas, sim, estão longe de ser exceção.
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